30 de out, 2017, Aninha
O presente trabalho busca relacionar o uso de drogas, como uma manifestação cultural, e o etnocídio das diferentes políticas de droga. Para tal, considerou-se cultura como conjunto de símbolos compartilhados por um grupo de pessoas. “Nas mais diversas sociedades e culturas estudadas por antropólogos e por outros cientistas sociais, encontramos algum tipo de situação, algum momento em que não só é permitido, como pode inclusive ser valorizado, um tipo de alteração de comportamento, alteração de atitude em relação a uma rotina. Essa alteração pode ou não estar associada ao uso de substâncias que chamamos de drogas.” Velho (1997, pg. 62) A afirmação de que não existe droga a priori foi feita por Richard Bucher, quem acredita que são a atividade simbólica e o conjunto das motivações no consumidor que transformam uma substância em droga. Como a droga só pode ser compreendida a partir de uma relação biopsicossocial, questiona-se se a efetividade da proibição da substância em si, fundamentada na perseguição ao usuário e aos envolvidos com seu comércio, já que não são situações específicas que as políticas de drogas buscam combater, mas justamente a droga em si. O termo droga pode possuir conotações negativas. Ainda que uma droga seja uma substância, as substâncias taxadas como drogas geralmente são percebidas como mais negativas do que outras. Esse julgamento do uso como negativo configura uma hierarquização dos valores, impossibilitando a diferença cultural manifestada no uso de substâncias. O primeiro aspecto a ser salientado é como o uso de substâncias é feito pelo ser humano constantemente, em diferentes lugares, há muito tempo. Entretanto, em cada sociedade, substâncias adquirem diferentes simbologias. Logo, existem substâncias cujo uso é aceito e apoiado, e outras cujo uso é controlado ou mesmo proibido. As proibições configuram uma posição do estado quanto às drogas que “podem”e às que “não podem”, baseadas em interesses específicos e que buscam controlar o comportamento, adequando-o a um padrão. A variedade de substâncias psicoativas é signitificativa, e a classificação entre lícitas e ilícitas não abrange as particularidades de cada uma. Nesse mesmo sentido, utilizar mecanismos legais para estabelecer controle do uso e do comércio de drogas é a busca da padrozinação em detrimento da consideração das diferenças individuais, porque desconsidera as inifinitas possibilidades de relação com uma substância, considerando que essa relação é simbólica e que os símbolos são processados de acordo com uma perspectiva individual oriunda do contexto e das experiências de cada indivíduo. O trabalho de Escohotado é um amplo estudo sobre o histórico do uso de drogas e foi a base para buscar exemplos para o presente trabalho a fim de verificar como diferentes sociedades podem estabelecer relações distintas com a mesma droga, ou como a mesma sociedade pode estabelecer relações distintas em momenos históricos diferentes. Esse estudo fornece exemplos de como uma substância pode ser percebida e utilizada de maneiras distintas, assim como cada pessoa se relacionada de uma maneira particular com cada substância. Nessa ótica, é possível analisar como a cocaína exemplifica esse complexo processo de significação da droga. A coca é uma planta, sagrada para os povos andinos, mascada para amenizar os efeitos da altitude. Nas farmácias, no início do séculos XX, era possível comprar cocaína como mais um farmáco, com slogan próprio que relacionava a substância ao combate ao pessimismo. Essa mesma substância forneceu subsídio para interferências em outros países, como Colômbia e México , sob a alegação de ser o inimigo Americano número 1. Para camponeses, sua plantação significa a única possibilidade de gerar alguma renda. Para grandes e poderosos empresários, significa a perpetuação de um modo vida baseado no consumismo exagerado. Utilizou-se o texto de Clastres, Arqueologia da violência, capítulo 4- Do etnocídio. De acordo com esse texto, o etnocentrismo é a capacidade de avaliar as diferenças pelo padrão da própria cultura. Nesse sentido, políticas que orientam o comportamento dos usuários utilizam como padrão uma forma de uso de substâncias muito específica, que consideram melhor. Enteder o uso de drogas por si só como problemático já um indício da visão etnocêntrica. No final do século XIX, várias substâncias foram isoladas, dentre elas, as principais drogas hoje conhecida. Além disso, houve uma dispersão das diferentes drogas entre os continents por via marítima. A história da proibição, em um âmbito internacional, foi impulsionada em meados do séculos XX. Devido à imigração chinesa, de acordo com Escohotado, os EUA tentaram controlar o uso do ópio. Diante de tantas pressões americanas para regulamentar a produção de substâncias, foi realizada a Conferência de Shangai em 1909. Embora 12 países tenham participado, nem todos concordavam com as propostas americanas. Ainda assm, essa conferência estabeleceu dois princípios para a postura proibicionista : uso legítimo e combate à fonte de produção. O princípio do uso legítimo demonstra que desde o início a intenção da política proibicionista de drogas era controlar quem iria ou não usar, hierarquizando pessoas de acordo com um valor moral. Definiram, então, quem teria autorização de portar e utilizar a droga. Dessa forma, foram criadas as figuras dos viciados e dos traficantes. Nesse contexto, os mecanismos legais desenvolvidos para combater as drogas, combatem, na verdade, essas pessoas que foram marginalizadas. Atualmente, a legislação sobre substâncias psicoativas da maioria dos países está baseada os acordos da Convenção Única de Viena de 1961 e o Convênio sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971, como indicado no capítulo de livro escrito por Edward MacRae A legislação sobre drogas não foi construída considerando as diferenças culturais de cada país, mas sim, por interesses socioeconômicos de nações específicas influents. Nesse sentido, Scheerer (1997) demonstra que a proibição do ópio na China foi inicialmente motivada apenas por interesses econômicos. Burgierman (2002) e Maierovitch (2003) argumentam, no mesmo sentido, que a proibição do cânhamo ocorreu devido à concorrência com a indústria textil. Então, os mecanismos que reduzem as diferenças do ato de uso de subtâncias não foram acionados pela população, ao contrário, foram deliberados por acordos internacionais que desconsideraram a particularidade de cada cultura. Fica claro, então, como a política de drogas tem na sua origem uma visão etnocêntrica. Ademais, a origem da proibição está relacionada à tentativa de controle das substâncias e do comportamento dos usuários. Se o etnocídio é a destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes, camapanhas publicitárias, notícias jornalísticas, reações religiosas extremistas são formas de alterar pensamentos e modos de vida e , assim, exclui-los . “Diga não às drogas”, bordão brasileiro de prevenção ao uso, demonstra como a postura estatal busca eliminar possíveis variações e peculiaridades no uso da droga, pois simplesmente ignora a possibilidade de uso. O objetivo dessas campanhas é a abstinência, ou seja, que as pessoas não usem, de preferência, nunca experiementem, já que esse comportamento é considerado inadequado. Isso para as drogas ilícitas, visto que a política para drogas lícitas, ainda que mais prejudiciais à saúde, é feita de forma totalmente diferente. Essas campanhas revelam a atitude do Estado relativa ao uso de drogas. Na medida em que o Estado pune o usuário, ele está fazendo uso de uma ferramenta com o fito de suprimir as diferenças culturais, uma vez que considera que determinada relação simbólica com uma substância é errada, portanto, deve-se punir para acabar com essa diferença. As práticas culturais relacionadas ao uso de substâncias sofreram diferentes tentativas de etnocídio ao longo dos séculos. Um dos principais modelos de políticas de drogas é a “Intolerância e a Guerra às drogas”. O nome desse modelo adotado já revela o etnocentrismo, ao considerar as diferenças como intolerantes, bem como adimite o genocídio, representado pela guerra, com mortes reais, dos envolvidos nas relações das drogas. Em alguns casos, como a Guerra do Ópio, a Guerra ao tráfico no brasil, e a guerrilha Mexicana, o etnocídio chegou ao genocídio. Tal afirmação pode ser feita, ao se considerar que determinado grupo racial está estruturalmente envolvido com esse mercado marginalizado. As leis são o meio utilizado para marginalizar esse grupo social. Ao se relacionar o negro ao tráfico de drogas nas favelas, cria-se uma justificativa para o cometimento de assassinatos diários contra essa raça. Luiza Saad disserta sobre esse assunto no trabalho “O discurso da Medicina na proibição da maconha: preocupações acerca da composição racial na formação de uma República exemplar “. Ainda assim, essas práticas são disfarçadas pelo ideal evangelizador. Há o reconhecimento da diferença, julga-se essa diferença como negativa, em seguida, adimite-se a possibilidade de mudança sobre essa diferença, independente dos meios. Então, internação compulsória, prisão, manicômicos, ou inclusive, assassinato, se tornam ações “positivas” que visam “melhorar a vida de toda população. Tais ações são vistas como um esforço do corpo social para “salvar”os dependetes químicos, enquanto “salva e protege” a população que resistiu a esse mal. Nesse grande disfarce, são escondidas diferenças sociais, problemas econômicos, e diversos tipos de violência. Ademais, nesses tratamentos que buscam padronizar os indivíduos, outras diferenças culturais além do uso de drogas são perdidas. Formas de vestir, de falar, lugares específicos, músicas e várias outras particularidades passam a ser associadas a um grupo social o qual faz uso de substâncias. Assim, ao se eliminar as diferenças do uso drogas, consequentemente, eliminam-se também esses outros aspectos culturais. Nos casos dos mais marginalizados dentre os marginalizados, não cabe a “compaixão”característica dessa visão evangelizadora que busca regenerar os indivíduos perdidos para as dorgas. O traficante, negro, pobre, armado e bandido não ganha a compaixão ou o perdão nem da população, muito menos da polícia. Por isso, para ele a morte é suficiente. “Bandido bom é bandido morto” é uma frase utilizada com frequência e de forma bem seletiva no Brasil. Essa se aplica a esse sujeitos sem direito, que crescem, embora em uma área geográfica comum, dentro de uma outra realidade com outra cultura e outros símbolos, do que daqueles que os punem. No contexto brasileiro tangente ao uso de drogas, o etnocídio e o genocídio ocorrem todos os dias. Essas violações aos direitos humanos não são, contudo, defendidas abertamente pelo Estado. Este mantém, abertamente, apenas a postura etnocida, buscando transformar todos no modelo proposto por ele. Ainda assim, na Lei de Drogas brasileira, Lei 11.343 de 2006, há referências claras sobre a perspectiva etnocêntrica. Um dos motivos para isso é a falta de objetividade e clareza dos critérios utilizados para definer a conduta criminosa. Um dos critérios utilizados para classificar o crime é , de acordo com o inciso 2 do artigo 28 dessa lei, 5. Circunstâncias sociais e pessoais de quem portava a droga. Pessoas que moram em bairros mais pobres ou não possuem emprego fixo são mais facilmente enquadradas nesse crime, assim como pessoas que não possuem renda suficiente para comprar o valor estimado da droga portada. Em suma, como a essência do Estado é etnocida, de acordo com Clastres, pode-se perceber como as políticas executadas por ele para controlar uma manifestação cultural também será. Como as medidas adotadas interferem diretamente na vida dos cidadãos, não apenas aspectos culturais, como populações são mortas em nome da Guerra às Drogas.
Ilustração: Oradine
Referência Bucher R, Lucchini R. À procura de uma aborda- gem interdisciplinar da toxicomania: In: Drogas e Drogadicção no Brasil. Bucher R. Porto Ale- gre, Artes Médicas, pp. 181-204, 1992. Edward MacRae . Antropologia : aspectos sociais, culturais e ritualísticos. EDITORA ATHEN , Capítulo 3
Velho, G. “Duas Categorias de Acusação na Cultura Brasileira Contemporânea”. In: Individualismo e Cultura. Velho G, Rio de Janeiro, Zahar, pp. 55- 64, 1981. Luísa Saad O discurso da Medicina na proibição da maconha: preocupações acerca da composição racial na formação de uma República exemplar” 2011.
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