Texto por Emily Bandeira
Ilustrações por Thais Mendes, @folivora_a
Introdução
Quando comecei a aprender sobre política de drogas, novos mundos se abriram. Estudando sobre a proibição de substâncias, muitos links que permaneciam separados começaram, finalmente, a se unir. Comecei a reconsiderar alguns de nossos sistemas e modos de viver ocidentais. Comecei a rever, especialmente, nossas ideias sobre saúde e bem-estar, a maneira com a qual lidamos com nossos corpos e o que chamamos de medicina. Inclusive, o que chamamos de medicina? Quais são nossos conceitos de eficiência médica? Até que ponto deveríamos deixar que instituições interfiram sobre a autonomia de nossos corpos? Como é que sistemas inteiros podem ir de encontro com o conceito de cuidado pessoal? Seja através de pílulas e comprimidos feitos de petróleo (que raramente conhecemos as origens), seja não nos permitindo saber o que de fato está em nossa comida – aqui penso naquela lei ridícula que procurava esconder o "T" de transgênico das embalagens – como podemos nos cuidar melhor?
Me vi excessivamente desafiada pela maneira que determinadas instituições (O Estado, a Igreja...) possuem controle sobre nossos corpos, ou pior: sobre as escolhas que fazemos a respeito deles. Como surgimos com o nosso modelo de saúde atual? Como pode ser tão difícil pensar em maneiras de pensarmos em um novo "plano de saúde" (um, talvez que tenha mais a ver com a saúde dos indivíduos do quê com o lucro de determinadas empresas). Quem decide quais são as substâncias "do bem" e as "do mal"? Como? De qual maneira esses conceitos estão sendo utilizados por diferentes Estados em todo o planeta? Como essas decisões afetam a vida de milhões de pessoas? Quiçá bilhões? Enquanto buscava me aprofundar nessas questões, outras ideias e conectores começaram a se entrelaçar nessa conversa interna. E essas idéias envolviam, especialmente, o corpo e a vida das mulheres.
Se toda a discussão de "drogas e proibições" já inquieta qualquer um, ao se tratar de autonomia corporal, quando se é mulher, a discussão parece inquietar muito mais, a inquietação parece gritar dentro de nós. O exercício de controle que as sociedades impõem sobre os corpos das mulheres torna-se visível diariamente, em manipulações que saem do plano abstrato e se mostram vividamente em símbolos e ações. Muitas vezes esses símbolos tomam a forma de pequenas pílulas anticoncepcionais – que por si só, não representam um problema (podem até ser solução), porém, ao analisarmos as mulheres que tomam anticoncepcionais e vermos que a maioria não entende de fato como o medicamento atua em seus organismos e desconhecem os impactos que ocorrem em sua própria fisiologia...voltaremos a problematizá-las sim. Principalmente quando pensamos que grande parte das mulheres iniciam o uso da pílula anticoncepcional antes dos 18 anos, o que torna ainda mais desafiador a tarefa de trazer esse costume sob análise e observação.
Muitas outras vezes esses símbolos e gestos são muito mais sutis, deixando mulheres desconfortáveis frente a ideias e movimentos orgânicos e naturais, como o lidar com a menstruação e o próprio sangue, ou praticar livremente a auto-aceitação.
É importante voltarmos a essas discussões para abrirmos os olhos para as maneiras com as quais lidamos com os direitos sexuais e reprodutivos hoje em dia. Os modos com os quais instituições interferem diretamente no ventre das mulheres deve ser exposto, analisado e discutido.
O corpo deve voltar a pertencer à indivídua mais uma vez.
Esse pequeno ensaio procura reunir cronologicamente de maneira básica alguns eventos globais. Reatando algumas datas específicas à ascensão de "relações de poder" que tornaram-se mais fortes durante os últimos séculos. Reúno essas informações na esperança de que possamos novamente ressignificar nossa autonomia e retomada de significados.
1. A caça às bruxas
Ao contrário do que eu acreditava, voltar lá atrás no período mais intenso da caça às bruxas (porque sim, ela ainda ocorre nos dias de hoje! Procure saber sobre a perseguição às bruxas moderna!) é de vital importância para compreender como nosso modelo ocidental trata do tema "saúde" hoje em dia. A caça às bruxas está conectadíssima à medicina ocidental moderna e sua prática. Como é que tantas vezes achamos mais natural recorrer a um analgésico ao invés de tomar um chá ou buscar outras soluções naturais para aliviar uma dor de cabeça? Como não somos ensinads a ler os sinais que nossos corpos apresentam e que poderiam nos precaver de possíveis doenças? Porque quase sempre só passamos a nos preocupar com nossa saúde quando apresentamos algum sintoma? Essas e outras questões são mais facilmente analisadas quando aprendemos sobre a tentativa de extermínio do cuidado popular e a ascensão da profissão médica.
"Mulheres sempre foram curandeiras. Elas eram as doutoras não-licenciadas e anatomistas da história ocidental. Elas eram abortistas, enfermeiras e conselheiras. Eram farmacêuticas, cultivando ervas medicinais e trocando os segredos de seus usos. Elas eram parteiras [...] por séculos, as mulheres eram "os médicos" sem a formação acadêmica, banidas dos livros e das palestras, aprendendo umas com as outras, [...] Elas eram chamadas de mulheres sábias pela população, bruxas e charlatãs pelas autoridades." (Ehrenreich, English, 1972, pp.1, tradução livre)
Inicialmente, para melhor compreendermos o que aconteceu, vamos voltar um pouco ao contexto histórico. A caça às bruxas teve uma duração de mais de quatro séculos (sendo os piores períodos entre o século XIV até o séc. XVII) por toda a Europa Ocidental e acompanhou a transição do feudalismo para o capitalismo. É importante que nos situemos cronologicamente para melhor perceber como a tentativa de desmontar o controle das funções reprodutivas das mulheres tem um caráter claramente capitalista.
Durante a transição da escravidão para a "servidão" entre os séculos V e VII d.c., os senhores deveriam garantir para seus escravos um pedaço de terra e uma família, numa tentativa de conter as revoltas que aconteciam e evitar que seus servos fugissem para comunidades "quilombolas" (uso esse termo, pois eram comunidades afastadas, embora saibamos que esse termo possui outras origens distantes da européia, a palavra original da autora Silvia Federici é "maroons"). E, assim, uma nova relação de classes desenvolveu-se, homogeneizando as condições de ex-escravos e novos agricultores. (Federeci, 1998, pp.23)
O aspecto mais importante da servidão foi o fato de dar aos servos (e servas) direto acesso aos meios de produção (ibidem, 1998, pp.23) , o que significava, para essa 'nova classe', dedicar mais tempo a reprodução e a negociação dos limites de suas obrigações. Se os servos recebiam um pedaço de terra na qual poderiam produzir os meios para a própria subsistência e poderiam passar esse pedaço de terra para seus filhos, isso lhes aumentava a autonomia e qualidade de vida significativamente. Enquanto isso, esse arranjo também provia novas organizações e cooperações entre a comunidade (especialmente no que se diz no uso de 'áreas comuns' (commons) – bosques, florestas, lagos, pastos, etc).
"[...] Durante essa época, a divisão sexual do trabalho era menos acentuada e as mulheres 'trabalhavam nos campos, além de criarem as crianças, cozinharem, lavarem e costurarem as roupas e manterem o jardim de ervas; suas atividades domésticas não eram, então, desvalorizadas e não envolviam relações sociais diferentes das dos homens[...] e a maioria das tarefas que as mulheres servas realizavam eram feitas em cooperação com outras mulheres, o que era uma fonte de poder e proteção para elas, apesar do fato de que a igreja pregava a submissão das mulheres perante os homens. (Ibidem, 1998, p. 25)
Quando as revoltas de servos contra senhores tornou-se mais endêmica e intensa, também intensificou-se a Inquisição. A "loucura das bruxas" (em inglês, "witch craze") apareceu enquanto solução para conter as insurgências da população, que tornavam-se cada vez mais um problema para o Estado e para a Igreja. As caças às bruxas e seus julgamentos eram campanhas políticas organizadas e seguiam procedimentos legais bem-ordenados.
[...] Sem dúvidas, com o passar dos séculos de perseguição às bruxas, a acusação de "bruxaria" passou a englobar uma multitude de pecados que iam desde subversão política, heresia religiosa até indecência e blasfêmia. Mas três acusações emergiam repetidamente na história da bruxaria por todo o norte da Europa: Primeiro, bruxas eram acusadas de todo tipo concebível de crimes sexuais contra homens. De maneira simples, elas eram acusadas de possuir uma sexualidade feminina. Segundo, elas eram acusadas de estarem organizadas entre si. Terceiro, elas eram acusadas de possuírem poderes mágicos que modificam a saúde das pessoas – de maneira negativa mas também positiva. Elas normalmente eram acusadas especialmente por possuírem poderes medicinais e obstétricos. (Ibidem, 1972, pp.10)
Enquanto "exterminavam" as bruxas, o Estado não apenas desorganizava o cuidado popular entre as comunidades como também decidia qual o tipo de medicina que seria considerado próprio de ser praticado. Hoje em dia, podemos perceber os reflexos dessa interferência do Estado quando a medicina moderna possui "o poder de determinar quem vive e quem morre, quem é fértil, quem é estéril e quem é "louco" e quem é são." (ibidem, 1972, pp.4)
" O outro lado da supressão das bruxas enquanto curandeiras foi a criação de uma nova profissão médica e masculina, sob a proteção e patrocínio das classes dominantes. (Ibidem, 1972, pp6)"
Ao mesmo tempo em que a Igreja pregava contra o cuidado médico para as massas, não parecia ter nenhum problema em apoiar o cuidado médico para as classes "superiores".
[...] Reis e nobres tinham seus próprios médicos que eram homens, às vezes até padres. O problema real era o controle: Curandeiros homens das classes "superiores" sob os cuidados da Igreja eram aceitáveis, mulheres curandeiras como parte da "subcultura" das massas não. (Ibidem, 1972, pp.13)
2. A ascensão da profissão médica
No século XIII, período que antecedeu a "loucura das bruxas" (período mais intenso das perseguições), a nova medicina européia estabeleceu-se firmemente enquanto ciência secular e profissão. É importante lembrar que nesse momento da história, os médicos ainda não possuíam as "evidências científicas" que supostamente lhes dão superioridade nos dias de hoje. Concorda-se que os médicos treinados não possuíam metodologia eficiente e tampouco resultados melhores do que os das bruxas. A nova profissão era estritamente controlada pela Igreja e doutrina católica "Médicos universitários não eram permitidos de realizarem suas práticas sem que um padre lhes ajudasse e lhes desse conselhos e tampouco poderiam performar a prática para pacientes que negassem a confissão." (Ibidem, 1972, p.16)
Os estudos universitários da época expõem as dificuldades que ainda surgem quando lidamos com saúde nos dias de hoje. Um exemplo é a tentativa de traçar limites claros entre o que eram "doenças do corpo" (as quais os médicos deveriam tratar) e "doenças da alma" (as quais deveriam ser deixadas para os padres). Outro exemplo é o fato de que as mulheres eram legalmente banidas de realizar qualquer estudo universitário (e, por muito tempo, possuir qualquer tipo de educação formal) e, estes eram agora um pré-requisito para o exercício da profissão médica.
Novos conjuntos de lei foram criados para padronizar as novas condições médico-universitárias e mesmo que as novas leis não impedissem a maioria das curandeiras a continuar com suas atividades, elas poderiam ser especialmente perversas ao excluir as mulheres "letradas" da classe média que competiam com os médicos homens pela mesma clientela.
"[...] No séc. XIV, a campanha da profissão médica contra mulheres urbanas curandeiras (e "educadas") já era virtualmente uma realidade em toda Europa. Homens médicos claramente haviam conquistado um monopólio da prática da medicina entre as classes superiores (exceto na obstetrícia, que permaneceria uma atividade de parteiras mulheres por mais três séculos, inclusive nas classes superiores.). Tal profissão médica teria um papel-chave na eliminação da grande massa de mulheres curandeiras – as 'bruxas'. "(Ibidem, 1972, p.19)
Durante os julgamentos de bruxaria, o Estado, a Igreja e a profissão médica tornavam-se um. "A Igreja explicitamente legitimava o profissionalismo dos "doutores", denunciando curas não-profissionais como equivalentes a heresia" (Ibidem, 1972, p.19) E assim a caça às bruxas disseminou-se por séculos. Um genocídio muito bem estruturado e organizado. E se a caça às bruxas falhou na eliminação de todas as curandeiras da sociedade, ainda assim estigmatizou as bruxas-curandeiras com o estereótipo de supersticiosas ou más, que persiste até os dias de hoje.
3. O movimento de saúde popular norte-americano
Saltando para a década de 1830, em terras Norte-Americanas, um movimento de mulheres, trabalhadores e trabalhadoras começava a surgir. O movimento de saúde popular dos Estados Unidos foi um evento muito importante – embora não se fale tanto – que tratava da universalização de nossos modelos atuais de sistemas de saúde.
O final do século XIX não foi muito agradável para a maioria da sociedade estado-unidense: os períodos de fome haviam começado e a pobreza nas grandes cidades aumentava. A classe trabalhadora começou a pôr diferentes coisas sob análise; o elitismo da medicina, por exemplo. A nova classe de empresários norte-americanos que se estabelecia possuíam fortes associações com os "cuidadores" que haviam se tornado os profissionais médicos. Isso explica como um conjunto muito específico de homens brancos da classe média, médicos "regulares", dominariam o exercício da medicina.
"[...] Os médicos "regulares", com suas ligações próximas à classe alta, possuiam influência legislativa. Em 1830, 13 estados haviam passado leis de licença médica que tornavam ilegais práticas "irregulares" e estabeleciam os médicos "regulares" como os únicos profissionais legais.
[...] Não existia apoio popular para o conceito de "profissionalismo médico" e muito menos para o conjunto particular de médicos que afirmavam possuí-lo." (Ibidem, 1972, p.)
Esse tipo de ação da união entre a classe alta e médica eram fortemente rejeitados pela população das classes baixas. O que tornaria possível a criação do ambiente que uniria trabalhadores homens e mulheres a reconsiderar seu próprio sistema de saúde.
O movimento uniu a classe popular para a criação de novas estratégias sanitárias e a reconstrução coletiva de sua própria autonomia do exercício do cuidado. Grupos e setores começaram a juntar-se e a medicina seria praticada por qualquer um que demonstrasse habilidades de "cura" – independentemente de treinamento formal, raça ou sexo(Ibidem, 1972). Eles ensinariam para o público anatomia básica e higiene pessoal, velhos hábitos como tomar banho com frequência e outros conselhos preventivos, em oposição às "curas" praticadas pelos médicos "regulares". A ideia é a mesma de um slogan que foi utilizado pelo movimento de esquerda da época "Cada homem é seu médico", e dessa vez eles incluíam também as mulheres.
"[...] O movimento de saúde preocupava-se com os direitos das mulheres no geral, e o movimento das mulheres preocupava-se em especial com a saúde das mulheres e seu acesso ao treinamento médico.
Os novos setores médicos abriam suas portas para as mulheres em um momento em que o treinamento e educação médica "regulares" lhes era negado." (Ibidem, 1972, p.27)
O Movimento de Saúde Popular buscava reconsiderar o dogma médico e suas práticas. "Os novos setores começaram a criar suas próprias escolas de medicina (enfatizando em cuidados preventivos e curas através de ervas) e a graduar seus próprios doutores e doutoras." (Ibidem, 1972) Eles inclusive trouxeram para a discussão, em dado momento, se a profissão médica deveria ser uma ocupação paga, ainda por cima uma profissão paga em excesso.
Logo, os médicos e médicas "irregulares" somavam uma maior quantidade de que os doutores "regulares", que, então, começaram a criar suas próprias estratégias de segurança. "Em 1848, eles surgiram com sua primeira organização nacional, pretensiosamente chamada de Associação Médica Americana (American Medical association, AMA)"(Ibidem, 1972, p.). Eles também iniciariam uma ofensiva contra os setores populares. Argumentos sexistas seriam utilizados para prejudicar o movimento:
"[...] Mulheres praticantes poderiam ser atacadas por suas ligações aos setores do movimento; setores do movimento poderiam ser atacados por sua abertura para com as mulheres. Os argumentos contra mulheres médicas iam desde o paternalista 'Como poderia uma mulher respeitável viajar à noite para atender uma emergência médica?' até outros argumentos agressivamente sexistas."(Ibidem, 1972, p.)
A partir dali, com o apoio das novas classes de negócios norte-americanas (como os Rockfellers e os Carnegies) e novas teorias científicas importadas da Europa, a nova profissão médica estabeleceu-se firmemente. A teoria do germe havia sido criada por cientistas franceses e alemães, providenciando, pela primeira na história da humanidade ocidental "uma base racional para a prevenção e terapia de doenças" (Ibidem, 1972, p.).
"[...] em 1893, doutores treinados na Alemanha (financiados por filantropistas locais*) criaram a primeira escola médica no estilo Americano-alemão, a John Hopkins" (Ibidem, 1972, p), hospitais como o John Hopkins seriam introduzidos como o padrão da educação médica e por conta de seus sistemas educacionais elitistas (assim como ainda o é nos dias de hoje) o exercício da medicina seria mais uma vez dificultado para o acesso popular.
Os investimentos que foram aplicados para regulamentar e promover a profissão dos "doutores regulares", quando unidos aos interesses financeiros emergentes das indústrias farmacêuticas formaram um grande combo, que mais uma vez, preocupava-se pouco com a saúde das massas. A pesada ofensiva que o Movimento de Saúde Popular sofreu do profissionalismo médico demonstra quão pouco o sistema atual está apto a considerar formas alternativas de saúde para os indivíduos.
*"[...] Os Estados Unidos emergia enquanto líder industrial. Fortunas geradas a partir do petróleo, carvão e de explorações impiedosas de trabalhadores norte-americanos eram os fatores de maturação para os 'impérios' financeiros. Pela primeira vez na história dos Estados Unidos havia uma concentração suficiente de fundos corporativos para permitir uma filantropia massiva e organizada, por exemplo, intervenções de classe organizadas nos campos social, cultural e político da vida da nação. Fundações foram criadas como instrumentos pertinentes dessas intervenções – As fundações Rockfeller e Carnegie apareceram na primeira década do séc. XX. Um dos items mais importantes do cronograma era a 'reforma' médica, a criação de uma profissão médica respeitável, científica e 'americana'."
4. História da Proibição das drogas
Agora falemos sobre a proibição de substâncias e como ela está conectada à ascensão da indústria farmacêutica. É de conhecimento geral que grandes quantias de dinheiro são geradas a partir dos monopólios de narcóticos e que esse mercado é de enorme interesse financeiro. Ao contrário do que é defendido, a tentativa de controlar desesperadamente o monopólio das drogas não é tanto uma questão sanitária e de saúde quanto é uma questão financeira.
No começo do séc. XX, os usos ancestrais de álcool, ópio e outras ervas medicinais seriam atacados severamente pelos movimentos de "temperança" (protestantes e anglicanos agitariam os primeiros movimentos moralistas), pela nova "química moderna" e pela, então surgida, medicina 'tecnológica'.
Mais uma vez vemos a Igreja envolvida com questões que concernem a autonomia dos corpos e liberdade moral. Durante a primeira conferência nacional sobre ópio em 1903, vemos figuras anglicanas, como o Monsenhor Glemp, sinalizando as primeiras tentativas contra o uso e a venda de drogas. Os novos grupos do movimento da temperança reinvidicavam a interdição do álcool e do ópio. O movimento higienista ganhava força no Ocidente e a xenofobia também foi explorada enquanto argumento pelos movimentos de temperança.
Os trabalhadores chineses haviam sido levados aos EUA para ajudar na construção das estradas de ferro e, no começo do séc. XX, muitos haviam lá se estabelecido e levado consigo suas tradições e costumes, como o uso do ópio. Eles possuíam seus próprios bairros e comércios locais e começariam a representar uma ameaça para a maioria pobre da classe trabalhadora nacional. O consumo do ópio seria apresentado como a causa da degeneração social e seria usada enquanto desculpa para promover novos moralismos racistas. Histórias similares sobre xenofobia e uso tradicional de substâncias são encontradas ao se tratar do uso da maconha por populações negras e mexicanas nos EUA. Também podemos achar tal associação racista nas primeiras leis proibicionistas brasileiras, nascidas na tentativa clara de controlar a população descendente de escravos, como a Lei do Pito do Pango de 1830. Outros usos perversos do uso de substâncias para controles de populações específicas, como no caso do incentivo do uso do álcool para indígenas (por toda a América do Norte e do Sul), também são exemplos dessa ferramenta racista.
Enquanto os movimentos de temperança e contra substâncias crescia, veríamos mais uma vez as novas classes empresariais norte-americanas interessadas em financiar "novos tipos de negócios". Dessa vez, quantias muito grandes de dinheiro seriam investidas massivamente na mídia, que começava a apresentar para o público os "grandes problemas" – as drogas e os valores culturais estrangeiros – como ameaças ideológicas. campanhas proibicionistas de larga-escala seriam promovidas por todo o país. Tais campanhas seriam pagas por colaboradores muito ricos, como William Randolph Hearst, também conhecido como amigo de Harry Anslinger*. As novas colaborações feitas entre a classe empresarial, a mídia e o governo fariam os EUA sentirem-se extremamente ameaçados pela catástrofe que o consumo de drogas representava. O que, na realidade, não era o caso.
Em 1909, os EUA convidou países para a Conferência Internacional de Xangai, a primeira tentativa de controlar as drogas internacionalmente (que os EUA tenha escolhido a China para o local deste primeiro encontro me parece um tipo muito fino de ironia). Essa primeira tentativa não seria tão bem-recebida pelos outros países como os EUA imaginava. O ópio que vinha da Indochina, por exemplo, era uma parte não-negociável da receita financeira da França. Ou o mercado de kif nas colônias, que era basicamente movimentado pelo uso tradicional da substâncias nas comunidades também era financeiramente crucial para a economia dos países exploradores.
Situações parecidas eram compartilhadas pela Espanha, Portugal e pelo Reino Unido, tratando-se de diferentes substâncias e suas colônias (folhas de coca na América do Sul e cannabis e kif no Marrocos e Norte da África), para não mencionar a Alemanha com sua nova indústria farmacêutica, que obviamente precisava de grande quantidade de matéria-prima, as tão famosas "drogas" que os EUA tentava proibir. Confrontados pelas óbvias complicações financeiras que não permitiam o avanço da proibição, os EUA (é também bom mencionar, que era o único país, nesse momento, a não lucrar com o mercado do ópio) teve uma ideia brilhante. E se, esses países limitassem o "comércio" das drogas 'pesadas' ao uso médico?
Essa seria uma maneira eficiente de ditar a oferta e a demanda de substâncias (ter sobre controle a 'quantidade perfeita' de substâncias que iriam para as indústrias química e farmacêutica e só um pouquinho a mais para que consigam transitar pelo mercado ilegal), enquanto, ao mesmo tempo, controlar outros Estados produtores (quais seriam os países autorizados a produzir tais substâncias, afinal, a matéria-prima, sob demanda específicas? Talvez apenas os países e colônias que a "liga do hemisfério norte" conseguiria controlar economicamente?). A nova ideia começaria a maturar durante os próximos anos, através de diversos encontros internacionais.
Em 1912, a Convenção de Haye reuniu 13 Estados. As delegações européias ainda precisavam proteger seus negócios de ópio no Oriente e a proibição ainda não era considerada uma opção real.
Em 1919, o Tratado de Versalhes passaria para a recém-criada "Liga das Nações" a 'missão de controlar o tráfico de ópio e outras drogas'. Essa é a primeira instituição internacional a tornar-se responsável pela supervisão do mercado e tráfico de drogas.
Em 1925, a primeira regulamentação internacional sobre folhas de coca, ópio, Cannabis e seus derivados (Cocaína, heroína e kif) foi criada.
A OMS, Organização Mundial da Saúde, outra reunião muito conveniente de interesses, torna-se responsável pela classificação de novas substâncias. A fabricação e venda de drogas é automaticamente restrita aos usos científicos e medicinais. Paralelamente, em 1952, os primeiros antidepressivos e ansiolíticos foram criados.
Entre 1909 e 1953, muitos outros encontros internacionais e acordos aconteceram e podemos observar como o caminho da proibição foi sendo criado. O que aconteceu durante esses anos foi a auspiciosa mudança dos interesses da proibição: não mais como no começo do século, em que os interesses dos EUA divergiam dos europeus, mas um novo e auto-sustentável conflito entre os países consumidores do hemisfério Norte e os países produtores do hemisfério Sul.
Em 1961, a Convenção Única sobre Entorpecentes foi um passo gigantesco na história da proibição. 115 Estados estavam presentes, 77 delegações assinaram um documento que proibia 108 plantas e outras substâncias naturais e sintéticas. A Convenção Única proibia a produção e abastecimento de drogas específicas (basicamente narcóticas) e drogas com efeitos similares EXCETO sob licença para propósitos de tratamentos médicos e pesquisas científicas.
É no mínimo engraçado observar como a teia de drogas, sistemas de saúde e sistemas econômicos é tecida. O que não é nem um pouco engraçado, mas extremamente preocupante, é perceber como raramente essa "teia" de fato preocupa-se com a saúde dos indivíduos. A proibição das drogas moveu somas imensuráveis de dinheiro através do tráfico, indústrias farmacêuticas e Estados que, agora, "lutavam contra as drogas". Mas a mesma proibição não apresentou nenhuma solução para o que era, afinal, a razão primária para que ela mesma surgisse (romanticamente falando): a saúde dos usuários de substâncias. Problemas de saúde pública relacionados ao consumo de drogas pioraram através das consequências da proibição total.
Outras consequências "indiretas" também preocupantes advindas da proibição podem ser percebidas em outras áreas do bem-viver e da qualidade de vida. Se, em uma única Convenção, gerou-se uma guerra às drogas global, sem nenhuma evidência real (de qualquer tipo) de sua eficiência, talvez outras tentativas de movimentações financeiras poderiam ser testadas com o mesmo uso de controle de poder.
No mesmo ano, 1961, nasceu a União para a Proteção das Obtenções Vegetais (UPOV). Se outras instituições inter-governamentais podiam proibir as três principais plantas anodinas* globalmente enquanto ganhava com a produção e venda de cocaína e heroína (vamos lembrar que 'exclusivamente' para propósitos médicos e científicos), não seria possível institucionalizar outros tipos de controle vegetal? E, assim, a primeira lei sobre transgênicos, reprodução, patentes e sementes foi criada.
Novamente, em 1961, dessa vez num continente diferente, o Terceiro Congresso Mundial de Psiquiatria adotaria a primeira classificação medicinal de psicotrópicos, criados 4 anos antes pelo Professor Jean Delay, também conhecido como o pioneiro a introduzir o uso de substâncias psicotrópicas em hospitais. Tal classificação distinguiria psicotrópicos de narcóticos. Mais uma vez, conceitos e regulações sendo criadas e transfiguradas no intento de atender interesses financeiros. Mais uma vez, a saúde é tratada como uma prioridade secundária.
E a gente, até quando vai reproduzir um discurso de que a abstinência e controle das drogas é uma questão de cuidado com os/as usuários/as de substâncias? E até onde vamos ignorar que a proibição só gera mais danos e violência a toda a sociedade?
Quanto mais informações forem compartilhadas mais poderemos decidir e opinar sobre a autonomia de nossos corpos. E esse é só o primeiro passo.
*substâncias anodinas são substâncias capazes de aliviar dores. As três principais plantas anodinas são a papoula, a cannabis e a coca.
Bibliografia
EHRENREICH,B. ENGLISH. D. Bruxas, parteiras e enfermeiras, 1972.
FEDERECI, S. Calibã e a bruxa, 1998.
XAVIER COLLE. F. La vente libre de drogues, 2000.
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