Beatriz Scandiuzzi e Verônica Veloso
Até agora vimos que o cuidado tem um aspecto relacional. Tudo que promove o desenvolvimento interdependente e integral da vida pode ser considerado cuidado.
Também vimos que, como o cuidado é fundamental para a manutenção da vida, sempre há alguém exercendo esse cuidado. Na sociedade em que vivemos, grande parte das atividades de cuidado recaem sobre mulheres racializadas — que muitas vezes não terão tempo nem condições de se cuidar. Não são poucas as mulheres (negras) que precisam abrir mão de cuidar de si e de seus filhos para sobreviver, cuidando e até criando filhos de outras mulheres (brancas).
Cuidar de nós mesmas é uma necessidade e um direito. Infelizmente, em uma sociedade que opera por meio de estruturas opressoras, os recursos necessários para que esse direito seja exercido não estão disponíveis da mesma maneira para diferentes pessoas. E, por isso, ter todos os recursos materiais e imateriais para cuidar de nós mesmas pode ser interpretado como um privilégio.
Com essa série, esperamos instigar reflexões e chamar a atenção para que possamos (re)pensar nossas vidas a partir da perspectiva do cuidado, identificando quem é responsável pelo cuidado a nossa volta e assumindo a responsabilidade de cuidar de nós e de dividir de forma mais justa as tarefas de cuidado coletivo.
Nenhuma vida existe sem cuidado e, por isso, nos cuidar é fundamental! Cuidar de nós é um ato revolucionário. É muito difícil cuidarmos do mundo se nós mesmas não recebemos cuidado, e esse cuidado não precisa e nem deve partir de uma receita pronta! Compartilhar experiências pode ser muito positivo e pode inspirar outras pessoas, mas é importante lembrar que só nós mesmas sabemos o melhor caminho para nos autocuidarmos.
E você? Como pratica o autocuidado?
Antes de você responder essa pergunta, lembramos que precisamos estar atentas para o lugar em que o capitalismo ocupa nessa discussão. A lógica do consumo se apropriou do discurso de cuidado e, da mesma maneira que fez com a felicidade, condiciona o cuidado ao ato de comprar e a certos bens ou serviços específicos que dependem de dinheiro. Isso incentiva o consumismo e pode aumentar o sentimentos de culpa e de frustração.
É claro que bens materiais e serviços profissionais podem nos trazer prazer e ser um caminho para o autocuidado. E não devemos nos culpar por isso. Essa conversa não é sobre culpa! Mas precisamos nos questionar para que nosso cuidado não seja refém do capitalismo. Precisamos nos lembrar esse não é o único caminho.
O primeiro passo para pensarmos o autocuidado é o autoconhecimento. Sem se conhecer, como você vai saber sobre quais cuidados precisa em determinado momento? Como você vai saber o que de fato te faz bem? Cada corpo e cada pessoa funciona de um jeitinho bem especial, e é por isso que não tem receita pronta e se escutar e se conhecer é fundamental pra começar essa jornada com o autocuidado! Outras pessoas podem te ajudar e te inspirar nesse caminho, mas só você pode guiar.
A partir do autoconhecimento conseguimos identificar o que realmente precisamos para o nosso bem-estar e o mundo que queremos construir. A gente sabe que nada é tão simples assim e o autoconhecimento é uma jornada exigente e sem fim. E, por isso, nós mesmas às vezes temos dificuldades de identificar o que precisamos como autocuidado. E tá tudo bem! Vale testar inúmeras coisas e ver o que funciona!
O autocuidado vem com várias caras ou aparências: muitas vezes pode vir na forma de descanso, um banho gostoso, fumar um beck, tomar um vinho, ler um livro, fazer um encontro com as amigas (presencial ou virtual), ficar sozinha, ver o pôr do sol, se alimentar bem, se exercitar, meditar e até ir para uma festa.
Mas é importante lembrar que autocuidado e auto indulgência não são a mesma coisa! Ao pensar nessa distinção, vale refletir: qual é a minha intenção ao realizar essa ação? Realmente vai me fazer bem?
Por exemplo:
Estou fumando esse beck para relaxar, ter um bom momento, ou apenas por hábito? Ou ainda: vou assistir mais um episódio dessa série porque vai me fazer bem esse descanso ou porque estou fugindo do que preciso fazer depois?
Lembre-se, essa conversa não é sobre culpa. Nem tudo que fazemos tem que ter um significado profundo e ritualístico. A vida pode ser bem difícil às vezes, em especial com tudo que está acontecendo! Às vezes tudo que precisamos é de um momento prazeroso sem nenhum motivo válido para nos dar aquele empurrãozinho para cuidarmos de nós. Mas nem tudo que é prazeroso é autocuidado. E autocuidado nem sempre é prazeroso.
Muitas vezes cuidar de nós envolve criar hábitos e rotinas saudáveis — e nesse caso, o compromisso é uma forma importantíssima de autocuidado. É esse compromisso que vai nos manter firmes e fortes no nosso projeto de cuidar de nós mesmas mesmo quando não é exatamente isso que gostaríamos de fazer nesse momento.
E não é por isso que o autocuidado deve ser apenas mais uma obrigação na nosso dia a dia. O sistema capitalista e a lógica produtivista já nos sobrecarregam com tanto, não precisamos de mais um fardo. Entendemos que a partir do momento que colocamos o autocuidado como uma prioridade, nossa rotina vai se adaptando a isso.
Por meio do autoconhecimento, sabemos em que hora do dia faz mais sentido estudarmos, trabalharmos, comermos ou fazermos um ritual. E tudo isso pode ser autocuidado também! Trabalhar para nós também é autocuidado (as caprica pira).
Não precisamos ser produtivas sempre, mas é importante lembrar que ser produtiva não é apenas realizar uma atividade que traz retorno financeiro. Se cuidar, cozinhar para si, praticar o cuidado é também produtivo! E necessário para que consigamos realizar outros trabalhos.
Às vezes me percebo tentando estratégias que não estão funcionando. Internalizo a lógica produtivista e me sinto na obrigação de ser produtiva, mas não consigo. Nessas horas vale refletir: existem outras formas que preciso mais urgentemente me cuidar? Estou bem emocionalmente? Descansei bem? Me alimentei? Estou ouvindo e atendendo às necessidades do meu corpo? Nos forçar a atividades (mesmo as de autocuidado) que parecem obrigações é difícil, em especial quando existem necessidades mais urgentes de cuidado.
Infelizmente nem sempre e nem todas as pessoas tem a opção de decidir parar de trabalhar por um momento para cuidar de si. Mas trazer a atenção para esse ponto é importante para que possamos aproveitar ao máximo os momentos que temos disponíveis para nos cuidar. Lembrem-se, cuidar de nós é uma escolha política!
Também cabe a nós lembrar da nossa parcela de responsabilidade pelo cuidado coletivo e estar atentas ao nosso redor. Ao vermos alguém que está sobrecarregada e precisa de tempo ou outros recursos para cuidar de si, podemos fortalecer sua rede de apoio nos oferecendo para assumir parte do trabalho ou apoiá-la como ela precisa.
Todas as formas de autocuidado são potencializadas quando praticadas em rede e também quando as introduzimos na nossa rotina.
Fazer uma máscara de argila é incrível! Conseguir criar uma rotina e fazê-la semanalmente pode ser um cuidado ainda mais potente. Muitas formas de se cuidar podem ser praticadas diariamente — meditação, yoga, exercícios físicos, alimentação saudável, escrita terapêutica, leitura, sexo e masturbação, colocar a mão na terra…
Incluir ações de autocuidado na rotina pode ser muito importante para nos manter bem — mesmo em momentos de crise, como o que estamos vivendo. Muitas dessas ações favorecem também o autoconhecimento, que como falamos, é fundamental ao pensar o autocuidado.
Assumir um compromisso com o nosso autocuidado e introduzi-lo na nossa rotina é poderoso! E nos ajuda, ainda, a perceber quando não estamos bem.
Nesses momentos, vale fazer um esforço! Praticar o cuidado pode ser uma forma de entrega e de confiança. Saber que estamos fazendo nossa parte, o que é possível agora, com os recursos que temos disponíveis. Esse sentido de entrega e confiança pode ajudar a transformar como nos sentimos em relação ao autocuidado.
Sempre bom lembrar que o autocuidado não se faz sozinha! Nesses momentos é fundamental poder contar com uma rede de apoio =)
No contexto em que vivemos, é comum não estarmos bem. Faz parte. Pode ser que agora você não consiga se cuidar, não saiba nem por onde começar. Talvez você não tenha energia para isso. Nesses casos, buscar ajuda pode ser importante. Existem profissionais, como psicólogas e terapeutas, que podem te ajudar! Inclusive, se você sentir que precisa de ajuda ou de apoio, a nossa rede está aberta. Entre em contato com a gente (:
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