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  • Foto do escritorMulheres Cannábicas

Cannabis e Autismo

22 de fevereiro, 2019, Ana Cavalcanti





O uso medicinal da cannabis é feito por humanos há centenas de anos. Têm sido encontrados relatos, em crianças e adultos, do uso terapêutico de cannabis com a finalidade anticonvulsiva em diferentes culturas. Esse uso era feito em diferentes estratos da sociedade. Há registros do século XV, sobre um líder árabe que não encontrava remédio para controlar seus sintomas de epilepsia. Após diversas tentativas frustradas, ele obteve sucesso utilizando a cannabis, planta que o ajudou durante toda sua vida. Essa história é relatada no filme "O Cienstista"(1) .

O primeiro registro científico formal desse uso foi realizado pelo médico William Brook O’Shaughnessy em 1843 (2) que contou, em seu artigo "On the preparation of Indian Hemp", publicado no mundo ocidental, os potenciais terapêuticos da cannabis que o surpreenderam durante sua estadia na Índia. Na cultura hindu, a Ganja, como é conhecida a maconha, se relaciona a diversos aspectos da vida para além do uso terapêutico, como o uso social e religioso. O’Shaughnessy relata diferentes enfermidades que tinham seus sintomas amenizados pelo uso de derivados da cannabis, entre elas as crises convulsivas. Em seu texto, ele exemplifica diferentes formas de preparações para utilizar a cannabis medicinalmente, como em tinturas, preparadas com resina em álcool.

O autor relata o caso de uma menina de apenas 40 dias que sofria inúmeras crises convulsivas, as quais não puderam ser contidas por nenhum outro tratamento da época. Assim, a família e O’Shaughnessy decidiram iniciar o tratamento com a tintura. Os primeiros efeitos notados foram a melhora do sono e do apetite. Em seu artigo, ele descreve detalhadamente o tratamento, inclusive as dificuldades com doses e formas de administração do medicamento. Pouco mais de dois meses após o início, a criança foi considerada em estado de saúde robusto.

Esse relato, registrado no contexto científico do fim do século XIX, denuncia que as potencialidades medicinais das substâncias contidas na cannabis já eram conhecidas e utilizadas quando o paradigma proibicionista estabeleceu-se. Nesse sentido, parece que elas não foram consideradas nas novas formulações sobre política de drogas que vigoraram pela maior parte do globo durante o século XX.

O impacto da empreitada de O’Shaughnessy foi significativo. A indústria farmacêutica incorporou a cannabis a muitos de seus produtos e os cigarros índios eram vendidos nas farmácias assim como era feito com outras plantas, como as folhas de coca. Apesar de importante marco na pesquisa com cannabis, a proibição e as consequentes dificuldades em divulgar e produzir conhecimento relacionado às substâncias psicotrópicas impediram que a experiência de O’Shaughnessy resultasse nas transformações para as quais tinha potencial.

A mesma proibição impediu que os estudos do professor Carlini na década de 80 ecoassem e se multiplicassem como seria de esperar em razão dos resultados. A primeira pesquisa sobre epilepsia e canabidiol feita com humanos foi realizada em São Paulo, em 1980 (3), em colaboração do professor Elisaldo Carlini e de pesquisadores de Israel, como Rafael Mechoulam, que forneceram o canabidiol, isolado a partir de haxixe apreendido pela polícia. Os 10 pacientes voluntários não tiveram convulsões enquanto tomavam o canabidiol. Os resultados foram confiáveis, apesar da pequena amostra. Entretanto, os impactos da pesquisa foram menores do que o esperado. Poucos estudos clínicos sobre esse tema foram realizados. O contexto internacional de proibição impediu que essa possibilidade terapêutica - que poderia ter impactado milhares de vidas - fosse devidamente investigada.

No início da década de 90, foram descobertos os endocannabinóides (4), além de outros importantes elementos do sistema endocannabinóide que melhoraram a compreensão sobre ele e sua interação com cannabinóides exógenos (que não são produzidos no corpo e podem encontrados nas plantas de maconha ou serem sintetizados). Tais descobertas, somadas às experiências empíricas de usuários recreativos, reacenderam a curiosidade científica acerca de sua característica anticonvulsiva. A luta dramática de mães que fizeram o caso de seus filhos serem conhecidos, como Caso Charlotte, nos Estados Unidos, e Anny Fischer em Brasília, também muito contribuíram para demonstrar a urgência em se retomar pesquisas relacionadas a tal temática. A experiência dessas mães corrobora com as descobertas científicas centenares, assim como com as práticas milenares de uso terapêutico com a cannabis.

O uso de cannabinóides em pacientes tanto com epilepsia, quanto com autismo, impacta diversos sintomas, para além da redução das crises convulsivas. Alguns desses sintomas foram relatados pelas mães de pacientes que passaram a utilizar o óleo de cannabis rico em CBD e participaram do estudo "Efeitos de extrato de Cannabis sativa rico em cannabidiol sobre os principais sintomas associados ao transtorno do espectro do autismo: relato de 18 casos de uso compassivo " (5) .

Além da já citada redução das crises convulsivas, foram destacados pelos pais dentre os sintomas que foram influenciados pela administração do fármaco :

  • 1. HDA: hiperatividade e déficit de atenção;

  • 2. DC: distúrbios comportamentais, tais como: movimentos repetitivos, flappings, ecolalias, agressividade e auto-agressividade, crises de choro extremado, reações de medo excessivo ou pânico;

  • 3. DM: déficits no desempenho motor;

  • 4. DA: déficits de autonomia para atividades da vida diária, tais como: alimentar-se, vestir-se, fazer a própria higiene e locomoção;

  • 5. DCI: déficits de comunicação e interação social;

  • 6. DDC: déficits no desempenho cognitivo;

  • 7. DS: distúrbios do sono;

  • 8. CC: crises convulsivas.

Esses sintomas foram avaliados por meio de questionários mensais padronizados preenchidos de acordo com a percepção dos responsáveis do paciente, assim como pela avaliação clínica periódica realizada pelo médico.

Poderíamos adicionar como resultado benéfico do uso do óleo rico em CBD a redução de outras medicações com efeitos colaterais significativos, sobretudo, quando aplicadas em crianças. Ademais, a ausência de efeitos colaterais indesejados para os indivíduos, certamente, é um dos pontos que mais influencia o uso de CBD para o tratamento desses casos.

Alguns dos sintomas relatados em depoimentos feitos pelos pais após 7 meses de uso - relacionados à atividade neuronal de autistas e epilépticos - já foram indicados como modulados pelo sistema endocannabinoide. A revisão (6) teve como objetivo reunir o conhecimento disponível acerca do papel do sistema endocannabinoide na etiologia e no tratamento de desordens emocionais e de ansiedade. Os padrões de expressão do sistema endocannabinoide no sistema límbico, relacionado ao processamento de emoções, já evidenciavam que o S. E poderia exercer controle sobre comportamento emocional, humor e stress. Os dados coletivos analisados por essa revisão apontam para mesma direção. Esse efeito pode ser constatado no trecho do relato dos pais : " [ ela agora] Amanhece muito bem humorada e executa todas essas atividades. Acabei de me lembrar do humor. Gente o óleo dá um bom humor, minha filha ficou muito bem humorada, muito bem humorada, ela é uma criança muito brincalhona, ela tem uma sagacidade para tirar brincadeira uma sacada muito interessante".

  • Vale citar também "[...]Eu diria como ponto alto do experimento que é a redução praticamente a nada de agressividade, os episódios eles eram constantes agora (...) praticamente não existem".

A melhora do sono parece estar relacionada à melhora dos outros sintomas também.Este efeito pode ainda estar envolvido no desenvolvimento das funções cognitivas complexas, tais como aprendizagem e memória. O estudo (7) faz uma revisão dos dados disponíveis na literatura, mostrando o envolvimento direto entre a ativação dos receptores cannabinoides e a modulação de diferentes formas de aprendizagem e memória. Os dados analisados indicam o significativo progresso feito nos últimos anos para compreender os mecanismo que determinam esse envolvimento. Todavia, ainda falta muito para compreensão dos mecanismos utilizados pelo sistema endocannabinoide em todo o corpo. Alguns relatos de pais que condizem com esses efeitos cognitivos são : "Ele está desenvolvendo muito bem o tema da fala. " ; "Na aprendizagem a melhora foi assim geral, tanto na leitura, quanto na escrita, na matemática, enfim teve uma melhora em todos os sentido" .




Ao analisar o conjunto de sintomas, chama a atenção a dificuldade de separá-los em categorias muito claras. De alguma forma, estão muito relacionados. Uma teoria que explica a relação entre eles e o S.E é a da hiperexcitabilidade cerebral , explicada no artigo do professor Renato Malcher (8), a qual atribui os sintomas expostos anteriormente, em autistas e epilépticos, à intensa dinâmica cerebral própria desses quadros. Um neurônio pode ter maior potencial de ser excitado/ ativado e de, consequentemente, transmitir esse impulso nervoso aos vizinhos, e, caso haja uma deficiência nos mecanismos de controle dessa propagação, pode ocorrer uma cadeia de atividade neuronal intensa e retroalimentativa, caracterizando um "caos" mental. O excesso de ativação neuronal é, também, conhecido como atividade neuronal epileptiforme e resulta de um defeito crônico ou agudo dos mecanismos fisiológicos que regulam o fluxo de atividade sináptica. É justamente para essa regulação que os canabinoides podem contribuir.

Dos fitocannabinóides conhecidos, sabe-se que, pelo menos três, contribuem para a atividade anticonvulsivante : o CBD, o THC e a cannabivarina. É importante destacar que estudos científicos (9) chamaram a atenção para a ação sinérgica que diferentes compostos da planta possuem : o efeito comitiva , entourage efect. Isso significa que os efeitos desses canabinoides administrados em conjunto é diferente do que se tivessem sido isolados.

O sistema endocannabinoide pode ser modulado por essas substâncias, embora tenha seu próprio mecanismo de controle para a atividade neuronal excessiva. Quando há o excesso de atividade excitatória, o S.E responde produzindo endocannabinoides que ativam os receptores CB1, refreando a propagação neuronal. Assim, há um balanço entre atividade de neurônios excitatórios e inibitórios. Essa base neurofisiológica evidencia aspectos etiológicos comuns entre doenças do espectro do autismo e epilepsia clínica. Ou seja, descobrir neurofisiologicamente por meio de quais mecanismos o S.E atua ajuda a compreender o que há de comum na origem desses transtornos. É importante ressaltar que, se a atividade epileptiforme for resultante de um excesso de atividade neuronal inibitória, o uso de fitocannabinoides pode potencializar essa hiperativação. Outro fator que resulta no acúmulo de endocannabinoides no corpo, e, portanto, para a regulação descrita acima, são os hormônios glicocorticóides, envolvidos com regulação metabólica , homeostase energética , mecanismos de estado de alerta e relaxamento, formação de memórias emocionais, respostas cognitivas e comportamentais em adaptação ao estresse.

Nem sempre esse excesso de energia pode ser contido no interior do indivíduo, por isso, muitas vezes, a energia é convertida e manifestada, seja na forma de efeitos motores ( crises convulsivas, espasmos musculares, movimentos estereotipados) ou de estado de consciência ( conexão com o mundo exterior, falta de comunicação). O excesso de energia dificulta simples atividades rotineiras, como dormir, se concentrar, se comunicar. Essa teoria explica que o sistema endocannabinoide é responsável por modular a atividade elétrica neuronal [ neuromodulador inibitório ] , impedindo que a intensa atividade neuronal continue se propagando, sendo um ponto chave integrativo do sistema neuroendócrino.

Muito já foi descoberto sobre o Sistema Endocannabinoide, seus componentes, e atuação em diversas doenças. Entretanto, sempre que profundamente analisado, fica nítido como ainda são necessárias muitas investidas para a compreensão do funcionamento desse sistema, que continua a surpreender cientistas e estudiosos no mundo inteiro.

Referência

.

1. O Cientista - documentário da Fundação Canna (http://mechoulamthescientist.com )

2. O'Shaughnessy, W. B. (1843). On the preparations of the Indian Hemp, or Gunjah: Cannabis indica their effects on the animal system in health, and their utility in the treatment of tetanus and other convulsive diseases. Provincial Medical Journal and Retrospect of the Medical Sciences , 5 (123), 363.

3. Cunha, J. M., Carlini, E. A., Pereira, A. E., Ramos, O. L., Pimentel, C., Gagliardi, R., ... & Mechoulam, R. (1980). Chronic administration of cannabidiol to healthy volunteers and epileptic patients. Pharmacology , 21 (3), 175-185.

4. Griffin, G., Gibson, D., Mandelbaum, A., Etinger, A., & Mechoulamţ, R. (1992). Isolation and structure of a brain constituent that binds to the cannabinoid receptor. Science , 258 , 18.

5. Fleury, P., Malcher, R., Ramirez, L., (2017). Efeitos de extrato de Cannabis sativa rico em cannabidiol sobre os principais sintomas associados ao transtorno do espectro do autismo: relato de 18 casos de uso compassivo ".

6. Hill, M. N., & Gorzalka, B. B. (2009). The endocannabinoid system and the treatment of mood and anxiety disorders. CNS & Neurological Disorders-Drug Targets (Formerly Current Drug Targets-CNS & Neurological Disorders) , 8 (6), 451-458.

7. Marsicano, G., and Lafenetre, P. (2009). Roles of the endocannabinoid system in learning and memory .

8. Malcher-Lopes, R. (2014). Canabinoides ajudam a desvendar aspectos etiológicos em comum e trazem esperança para o tratamento de autismo e epilepsia. Revista da Biologia .

9. Ben-Shabat, S., Fride, E., Sheskin, T., Tamiri, T., Rhee, M. H., Vogel, Z., ... & Mechoulam, R. (1998). An entourage effect: inactive endogenous fatty acid glycerol esters enhance 2-arachidonoyl-glycerol cannabinoid activity. European journal of pharmacology , 353 (1), 23-31.

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