O cuidado pode ser entendido de muitas formas e visto por diferentes perspectivas.
Numa lógica patriarcal, colonial, branca e fundamentada na lógica cristã, alguns acreditam que o controle exercido sobre nossos corpos pode ser chamado de cuidado. Nesse sentido operam as proibições - do aborto, das drogas, sob o discurso de cuidar e proteger a sociedade e as populações mais vulneráveis. Ironicamente, sabemos que as consequências dessas proibições atingem de forma mais grave as populações mais vulneráveis.
Um outro olhar percebe o cuidado como um ato essencial para a vida. Pode ser feito por amor, por serviço ou como oferenda. Nem sempre fácil, mas sempre necessário.
Quando falamos de cuidado, falamos necessariamente de teias de relações. O cuidado tem uma característica relacional: mesmo quando a prática de cuidado é feita por você e direcionada a você, ela nunca é isolada; existem inúmeros fatores que a influenciam e possibilitam. Por exemplo, quantas pessoas precisam trabalhar para que você tenha comida em casa e possa cozinhar para si? Quem garante que o lixo seja recolhido e os ambientes estejam limpos?
Cuidado pressupõe a relação com o outro. Mesmo o autocuidado não acontece sem uma rede de cuidado que possibilita a vida acontecer e continuar. O autocuidado não pode ser resumido a um conjunto de técnicas e artifícios; ele faz parte do emaranhado de relações interdependentes que garantem a manutenção da vida e da sociedade. No fim das contas, (quase) tudo é cuidado!
Todas as atividades que possibilitam a manutenção da vida envolvem o cuidado. Alguns exemplos são tarefas domésticas como lavar, passar e cozinhar; atividades de cuidado com os outros como levar crianças pra escola e passar tempo com pessoas mais velhas. Acolher e escutar. O reconhecimento ou o apoio financeiro também pode ser entendida como cuidado. Cuidar dos doentes ou dos amigos que precisam de colo. Até mesmo para uma planta crescer ela precisa de cuidado - seja de um ser humano ou da mãe terra.
Podemos entender o conceito de cuidado como as atividades necessárias para a manutenção das atividades rotineiras e do bem estar cotidiano. São atividades que contribuem para o desenvolvimento integral e interdependente da vida.
Entendemos que, cada vez mais, é preciso olhar para o cuidado e pensar a nossa realidade a partir dessa perspectiva. Percebemos que, para existirmos, existe cuidado sendo feito. Tudo pede cuidado. Se o cuidado está em tudo, e é condição para que a vida se mantenha, então sempre há alguém exercendo cuidado.
E na sua vida e em seus contextos, quem são as pessoas exercendo o cuidado?
Essa atividade recai, culturalmente, sobre as mulheres. Não porque mulheres naturalmente tenham o dom de cuidar. Mas porque as estruturas sociais se organizam de tal forma que as responsabilidades de cuidado não são distribuídas igualmente. O Estado e as organizações se eximem da responsabilidade de cuidar: o cuidado é considerado responsabilidade da família, mais precisamente, das mulheres dentro da família, especialmente em casas com estruturas patriarcais e organizadas sobre uma lógica heteronormativa.
O cuidado exige tempo e recursos e, muitas vezes, mulheres terceirizam o cuidado contratando outras mulheres. Embora a responsabilidade de cuidar recaia sobre todas as mulheres, o ato de cuidado se torna um dever da mulher negra: são as que ocupam os espaços de empregadas domésticas, babás e cozinheiras. As mulheres brancas gerenciam o cuidado dentro das suas casas e contratam mulheres negras para realizá-los.
Cuidado é trabalho e deve ser (bem) remunerado. Mesmo que algumas atividades de cuidado sejam remuneradas, elas não recebem o reconhecimento necessário e são normalmente consideradas profissões e ocupações menos relevantes. Entramos em um paradoxo em que não sabemos se as profissões de cuidado não são bem remuneradas porque são exercidas principalmente por mulheres, ou se são exercidas principalmente por mulheres porque não são bem remuneradas e valorizadas.
Vivemos num sistema que depende dessas atividades de cuidado para se manter, mas não oferece condições para que esse trabalho de cuidado seja exercido e nem valoriza quem o exerce - seja por opção ou pela necessidade de suprir essa demanda.
Por que pensar o cuidado?
Entendendo que o cuidado recai basicamente sobre as mulheres (especialmente as mulheres racializadas) e as famílias, percebemos que quando estas passam por transformações, todas as dinâmicas de cuidado também são questionadas.
As dinâmicas de cuidado têm passado por transformações significativas nas últimas décadas. A maior parte das atividades de cuidado recaem sobre mulheres (especialmente as mulheres racializadas) e as famílias, por isso, uma vez que estas passam por mudanças, também são necessárias mudanças nas maneiras de cuidar. Vários fatores significativos influenciam a mudança do papel social da mulher: a participação no mercado de trabalho; a liderança em lutas sociais e tomada decisões de processos migratórios; mts mulheres optando por não terem filhos, ou terem mais tarde; o número de divórcios; enfim, fatores inúmeros. As famílias também estão se transformando, muitas fogem da lógica heteronormativa. O aumento da expectativa de vida também significa mais tempo de vida com necessidades diferentes de cuidado. Todos esses fatores demandam novas lógicas e dinâmicas de cuidado.
Estamos percebendo que não podemos entender a natureza como um recurso infinito, que não podemos continuar no atual ritmo de exploração. Em alguns aspectos, chegamos perto de esgotar os recursos de nosso planeta.
Isso se passa também em relação ao cuidado. Entendemos que as mulheres, o pilar central do cuidado na América Latina, não têm capacidade infinita de cuidar de outros. Nós também precisamos de cuidado.
O que queremos?
Queremos que as responsabilidades de cuidado passem a ser pensadas por todas e que sejam distribuídas de maneira justa.
Na prática, algumas medidas são: incluir diferentes segmentos sociais na discussão acerca do cuidado; criar alternativas de cuidado para que as cuidadoras possam escolher se querem ou não exercer o cuidado; retribuir os serviços de cuidado de maneira justa e criar condições adequadas para as trabalhadoras de cuidado; não deixar o cuidado dependendo apenas da família e de vínculos.
Precisamos criar e implementar mecanismos coletivos para sustentar e fortalecer as pessoas em necessidades de cuidado. Temos o direito de cuidar, de ser cuidadas e temos direito ao nosso autocuidado.
Numa sociedade que valoriza a produtividade a qualquer custo, o cuidado pode ser visto como secundário, desnecessário ou um privilégio.
Trazemos a perspectiva de que tudo é cuidado, que a vida se mantém através do cuidado.
O cuidado é uma necessidade para sobrevivermos, e o autocuidado, um direito. Para isso, precisamos fortalecer nossas redes e nos atentar a como o trabalho do cuidado está sendo distribuído.
Em tempos que a necropolítica se torna evidente, que o capital considera certas vidas descartáveis, o cuidado é revolucionário. Precisamos entender o cuidado como dever e direito de todas as pessoas e nos articular para que ele seja dividido de forma justa. É necessário que o Estado e as organizações e instituições assumam o seu papel no cuidado das pessoas e da natureza e é imprescindível que aquelas pessoas que têm o privilégio de poder escolher cuidar ou não cuidar, escolham por praticar o cuidado; assim, as responsabilidades são divididas e o fardo sobre os ombros daquelas que não podem escolher pode ser minimizado.
Foto-Ilustra por @emilybandeira
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