por Veronica Veloso e Beatriz Scandiuzzi
Não é tão simples definir o que é cuidado. E é por isso que o autocuidado - o cuidado direcionado para nós mesmas - também não pode ser traduzido em uma receita genérica de cinco passos. O autocuidado pode significar coisas muitas diferentes: para mim, autocuidado pode ser fumar maconha; para você, pode ser ficar um tempo sem fumar. Eu gosto de fazer máscara de argila, banho de assento e também de fazer as unhas e sempre vestir roupas que acho bonitas. Você pode não se importar com nada disso. Para mim, autocuidado é fugir para a natureza sem sinal de celular, mas você pode achar que ficar no meio da cidade assistindo filme é melhor. E tá tudo bem. Não tem receita e não tem certo nem errado. E o que funciona hoje para você pode não funcionar amanhã, pois o autocuidado também muda com o tempo. Nessa série de posts, veremos muitas - mas não todas - maneiras possíveis de cuidar e de se autocuidar.
A única certeza que nós temos sobre o autocuidado é que ele também depende de outras pessoas. O cuidado tem um aspecto relacional. Ainda que seja auto, não é só você que é responsável por esse cuidado e você não controla todos os fatores que permitem que ele aconteça. E é por isso que eu gosto de dizer - ou escrever - (auto)cuidado. O (auto)cuidado faz parte do cuidado coletivo.
Com a apropriação do discurso pelo capitalismo, o (auto)cuidado é, muitas vezes, vendido (literalmente) como uma responsabilidade da mulher. Mais uma responsabilidade; mais um fardo. Se não conseguimos equilibrar os estudos, o trabalho, o cuidado dos filhos e da casa, uma rotina de cuidado da pele e uma terapia, a culpa é nossa.
É importante nos relembrarmos o tempo todo que, enquanto mulheres, enquanto seres privados do prazer em uma sociedade machista, heteronormativa, racista, colonial e capitalista, escolher se cuidar é não só importante, mas necessário. É um ato de revolução. Em meio a tantos compromissos e uma lógica capitalista produtivista, o (auto)cuidado normalmente ocupa um papel secundário nas nossas vidas - quando ocupa algum lugar. O (auto)cuidado ou as práticas que nos geram prazer e a felicidade deveriam ser uma prioridade.
Mas colocar o (auto)cuidado como prioridade não é o suficiente, é só metade do caminho. Pois me cuidar não é uma escolha que depende só de mim. O (auto)cuidado não é fácil. Não só porque não é fácil escolher descansar quando fomos ensinadas a produzir, mas porque exige recursos - tempo, ajuda, dinheiro - que não são abundantes para todas as pessoas. Colocar a responsabilidade de nos cuidarmos apenas em nós mesmas, que já estamos sobrecarregadas com a responsabilidade de viver e de cuidar do mundo inteiro não é justo e não é cuidado; é colocar mais um fardo em nossos ombros.
Algumas pessoas têm mais recursos e acessos para se (auto)cuidar. Outras menos. Isso não significa que não devemos procurar realizar as práticas de (auto)cuidado que estão disponíveis no momento presente, mas não podemos esquecer que o discurso do (auto)cuidado faz parte de uma perspectiva mais ampla.
A conversa sobre (auto)cuidado não é de agora e não nasceu nas publicidades de marcas de beleza, nem nos retiros espirituais e muito menos no feminismo branco. O debate é antigo e precisa ser localizado. O feminismo comunitário, o feminismo de Abya Yala, pode ser interpretado como um feminismo que aponta a importância de cuidar do todo - humanos, animais e mãe terra. O bem-viver, termo de origem indígena e muito utilizado pelos movimentos de mulheres negras brasileiras, coloca a luta como direcionada para coconstruir uma realidade que proporciona felicidade e prazer. Audre Lorde, uma das autoras responsáveis pela popularização do debate sobre (auto)cuidado é uma mulher lésbica negra.
Não podemos deixar um debate que surgiu entre mulheres negras e indígenas e que desde seu início trata a importância do cuidado coletivo ser apropriado pelo capitalismo. A responsabilidade do (auto)cuidado não é apenas minha comigo mesma, é uma responsabilidade coletiva de cuidar de tudo e de todos.
Muitas vezes não enxergamos todo o cuidado necessário para a manutenção da vida e do planeta porque terceirizamos grande parte dele, transferindo essa responsabilidade para mulheres negras. Mas terceirizar o cuidado não significa torná-lo menos trabalhoso; e sim, invisível. Para muitas mulheres, o ato invisível e pouco reconhecido de cuidar se torna um fardo. Enquanto a sociedade como coletivo não assume a responsabilidade de cuidar, recai sobre as mulheres negras e indígenas o trabalho importante, mas cansativo, de serem as cuidadoras da sociedade.
Não só nas zonas urbanas nos é imposta a posição de cuidadoras. Mulheres negras e indígenas estão nas zonas rurais brasileiras, territórios disputados por madeireiros, mineradores e grandes agricultores. Ações essenciais, como alimentar, regar as plantas, acolher e cuidar dos doentes são práticas que recaem ainda mais sobre as mulheres em territórios de disputa. São também as mulheres negras e indígenas que na maioria das vezes lideram os movimentos e lutas pelo direito à terra. Grande número das mulheres defensoras dos direitos humanos assassinadas na América Latina são defensoras ambientais. A defesa ambiental é também um ato de cuidado.
O fardo de cuidar do mundo não desaparece magicamente das mulheres negras e indígenas porque compreendemos a importância de cuidar de nós. Impor a necessidade do (auto)cuidado a partir de uma perspectiva vazia do consumo e sem um pensamento interseccional sobre as possibilidades de cada mulher de (auto)cuidar é colocar sobre a mulher negra e indígena mais um fardo. Não teremos tantas oportunidades para cuidar de nós se não existirem outras pessoas para assumirem parte da responsabilidade de cuidar do mundo. Na maioria das vezes, quem assume esse fardo extra é uma mulher negra já sobrecarregada com as responsabilidades que a ela foram impostas. O (auto)cuidado não é possível se não assumirmos a responsabilidade do cuidado coletivo.
Em tempos de pandemia, praticar o (auto)cuidado e assumir responsabilidade sobre o cuidado coletivo envolve, mas não se resume, a se distanciar socialmente. É o exemplo perfeito de que o cuidado nem sempre é prazeroso. Todas queremos estar próximas fisicamente de quem amamos e muitos recursos associados ao nosso (auto)cuidado não estão dentro de casa. Mas é preciso ficar em casa se temos o privilégio de poder escolher. Quando escolhemos nos encontrar com os amigos ou com a família, quem assume o risco não somos só nós ou as pessoas que estão em contato direto conosco. Colocamos em risco toda a sociedade. É importante lembrar que existe a possibilidade de transmitirmos o vírus quando nos encontramos com alguém que amamos, mas também quando vamos ao supermercado ou pegamos uma entrega de comida na porta da nossa casa. E por isso é essencial que evitemos todos os contatos que não são estritamente necessários.
Talvez do alto do nosso privilégio, o coronavírus possa não ser tão assustador. Apesar de sabermos que ninguém está imune, a taxa de mortalidade é muito maior em zonas periféricas. É essencial que quem tenha o privilégio de poder escolher estar distanciado socialmente faça essa escolha em nome do cuidado coletivo. Enquanto uma pessoa escolhe encontrar os amigos e as famílias por um desejo individual, ela torna mais distante o dia em que todas as pessoas poderão se encontrar com quem amam.
O momento em que vivemos escancara a necessidade de repensarmos o que significa cuidado. Talvez há seis meses o meu (auto)cuidado envolvesse abraçar os amigos e me encontrar frequentemente com a minha família. Mas o significado de cuidado muda com o contexto. Se não estamos dispostos a repensar o que é (auto)cuidado para nós e se nos sentimos direito de hierarquizar o nosso autocuidado como mais importante do que nossa responsabilidade social de cuidado coletivo, isso não é (auto)cuidado. Isso é irresponsabilidade e egoísmo. Não deveria existir hierarquia.
Verdadeiramente revolucionário será o dia em que todas as pessoas reconhecerem a importância do (auto)cuidado e tiverem acesso aos mesmos recursos para praticar o (auto)cuidado; será o dia em que as pessoas assumirem a responsabilidade de cuidar - que nem sempre é um ato prazeroso ou fácil - enquanto uma responsabilidade coletiva. De pouco adianta cuidarmos de nós, se não cuidarmos do todo. E de pouco adianta cuidarmos de tudo se não cuidarmos de nós.
Texto da querida Verônica Veloso @vvveloso
Foto-ilustra baseada na Cartilha de Autocuidado entre Ativistas da CFEMEA por @emilybandeira
Comments